Não sei se lembram, mas quase há duas semanas dois dos meus alunos deixaram a KILT. São os filhos da ex-cozinheira, que foram embora com a mãe, ficando apenas o mais velho de 13 anos. Eram 2 dos mais
pequenos, dos que mais apareciam nas fotos partilhadas ao inicio. Saíram de um
dia para o outro, aliás, da manhã para a tarde e nem me tinha despedido deles.
Soube apenas do recado que me deixaram e, de um desenho que o mais velho estava
a fazer para mim mesmo antes de ir embora, onde pediu ajuda a quem sabia para escrever
“I like you teacher Zé”. Quando acabado, houve choro porque o pequenino decidiu
rasga-lo. É terrível o puto, uma autêntica peste. Pouco mais de duas semanas com eles, manhãs e tardes porque não tinham escola de Khmer, chegaram para não esquecer os dois miúdos que não se davam sentados, trabalhavam deitados em cima das
mesas e se recusavam a lavar os dentes. Custou-me imenso saber que iam embora,
custou-me pensar que não os voltaria a ver, custou-me sentir que não tinha
feito nada por eles. São 2 rapazes impecáveis, corajosos, generosos, carinhosos, capazes de passar aulas e aulas a apanhar bonés mas sempre com um sorriso
para mim.
Desde que saíram, tenho perguntado ao irmão mais velho por
eles. Nos primeiros dias não sabia nada, esta semana já me deu novidades. Estão
em casa com a mãe, a alguns kms da cidade. Soube que os dois pequenos
continuavam sem ir à escola pois, apesar de pública, é preciso algum material
escolar (livros, cadernos, lápis), registar os miúdos, uns ténis (o chinelo
não serve) e uniformes. Aqui os miúdos na escola têm que usar uniformes. Estes
dois têm equipamentos do Benfica e pouca mais roupa. Dinheiro também não existe
e, por isso, simplesmente, não estudavam nem tinham a alegria de poder ir à
escola conhecer e interagir com outros miúdos.
Se muitas histórias aqui mexem comigo, esta era impossível ouvir e não reagir. Há histórias piores, é certo. Mas estes miúdos fazem parte
do grupo dos “meus pequenos grandes benfiquistas” e por esses só não faço o que
não conseguir. Com esses já há laços criados que por certo resistirão a anos sem os ver ou aos kms de distância que nos irão separar. A esses, no que depender de mim, nunca mais faltarão as coisas
mais básicas. Mesmo assim, não tenho duvidas que recebo muito mais deles que
aquilo que dou.
Hoje chego à KILT, dei as indicações à minha colega sobre a
aula que havia para dar de manhã, peguei no irmão mais velho dos rapazes e fizemos-nos
à estrada. Mais de meia-hora a pedalar, uma bicicleta a cair de podre, o caminho na terra/lama, estradas onde a pobreza é aflitiva, uma realidade dura de ver, um calor
infernal, um escaldão adquirido e… chegámos ao destino.
Pelo meio parámos num mercado, no mínimo, peculiar. Após a
noite de ontem, o calor, o caminho de bicicleta e o cheiro daquele mercado eram
as piores coisas que me podiam dar. Fez-se, que remédio. Deixo algumas fotos do
mercado, creio que são suficientes para me compreenderem.
Estacionamento |
Carninha da boa!! |
Comprámos 2 pares de ténis,
2 calções, 2 camisas, água, 10 baguetes de pão e uma coca cola para os miúdos. Eu
tratei da comida, o irmão mais velho escolheu a roupa e os ténis. Estava mais
entusiasmado com as compras do que no dia em que comprou a sua própria mochila. Não me pediu
rigorosamente nada para ele, dei-lhe a coca-cola que não bebeu para partilhar
depois com os outros 2. A meio do caminho disse-me que eu era o melhor teacher
que ele já tinha tido, que não queria que eu voltasse para Portugal e que
estava muito muito “happy”. Eu também estava.
Chegámos à casa e tinha como que duas flechas disparadas à
minha bicicleta para virem abraçar um poço de suor. Na minha ignorância ainda
pensei que realmente existia uma casa quando o mais velho falou na “house” onde
sua família estava. É um barracão, não tem mais que 2 metros quadrados. Tem uma
cama onde dormem os 3 e não tem rigorosamente mais nada. Nem há espaço para
mais. Arrepiante... A minha frustração, tristeza e revolta ao ver os dois pequenos grandes benfiquistas ali foi compensada pela alegria deles.
Os miúdos vestiram os uniformes, tiraram fotos
comigo, brincámos, disseram-me o alfabeto todo em inglês, provaram que ainda
se lembravam de todas as cores que lhes ensinei, devoraram a coca-cola,
comeram uma baguete de pão e, mais uma vez, mostraram-me do que é que são
feitos. Tinham 10 baguetes de pão, 4 já tinham sido comidas (uma para cada um,
menos para mim que não quis) e foram oferecer 2 a 2 vizinhos que ali estavam e não
têm mais que eles. Estás-lhe no sangue o sentimento de partilha e generosidade, eu bem digo que aprendo muito com eles. Quando chegou a hora de ir embora, deixei lá 70 dólares para
o registo dos miúdos na escola, material que precisarem e para uma bicicleta
que, entretanto, percebi que precisam para chegar à escola. Fiquei
de voltar quando eles forem estudantes oficiais e tiverem mais, e melhores,
professores que o teacher Zé.
Sim, a mancha na minha t-shirt é suor. |
Hoje estou exausto, há dias em que o desgaste físico e psicológico se faz sentir em força. Estou impressionado com o que vi, tanto
na viagem como no destino. Há coisas que por mais vezes que se veja, não dá para habituar, não deixam de custar. Deito-me cedo mas contente comigo. Convosco também porque são as
vossas ajudas que proporcionam estes momentos. Tenho esperança que aquelas 3
horas tenham mudado por completo a vida daqueles miúdos, acredito que juntos conseguimos
fazer realmente a diferença na vida deles. Foi para isso que vim, é para isso que muitos de vós ajudam…
Estás a viver momentos inesquecíveis da tua vida, constatas diretamente com realidades, que por vezes se vêem na televisão, mas que estamos longe delas.Por aí é diferente. Não te esqueças que nasceste e viveste num mundo diferente, o que a ti te impressiona, para eles é normal e são felizes. Por ventura se viessem para cá, odiariam tudo o que aqui se passa. Pelo menos esses miúdos vivem em paz com a sua alegria.
ResponderEliminarAinda bem que os ajudas em tudo o que é possível, com todo o carinho que lhes podes oferecer e com todos os donativos que te têm chegado, por isso também tens que estar agradecido. Afinal no mundo Ocidental há quem esteja desperto a essas situações não pensando só na sua situação confortável, que por vezes,pensam que não é.
Tenho a certeza que tens feito um bom trabalho de que que nunca mais te vais esquecer e quando cá chegares, vais estranhar, mas nunca mais vais dizer mal de coisas que por aí são insignificantes.
Concordo com tudo o que a Carmo refere.
ResponderEliminarbeijinhos.