terça-feira, 18 de agosto de 2015

De todas as histórias tristes, a pior

Para começar e antes que me esqueça, um forte abraço para o meu fiel seguidor Nuno Alves. Não sei se voltarei de sandálias e com uma mente 100% renovada como tanto desejas, mas a tua camisola hippie está comprada. Meu amigo, não sei se é para meditarmos juntos e irmos os dois aos festivais trance freedom ou se para te divertires nessas andanças sozinho, o tempo e a “chapada” que levar quando voltar à realidade o dirão, mas a compra que pediste está feita.
O dia tinha tudo para ser normal. Aulas de manhã com os rapazes. Trabalharam bem e, como prémio, tiveram direito a ver os 4 golos do Benfica no final. À tarde, as aulas ficaram entregues à minha colega e eu fui com o Bel tratar da casa nova. Comprei 2 sanitas, ainda que sejam daquelas para cagar de pé, e 6 tanques que servem de banheira ou simplesmente armazenam água. Algum cimento também já foi comprado. 
Agora surge o maior dos obrigados que estou a dever, o maior obrigado dos últimos meses. Tio Zé, fiquei perplexo quando olhei para a dimensão da sua prenda, arrepiei-me de alto a baixo. Incrível, incrível mesmo. Quando acho que já me deu tudo, consegue dar mais e melhor. Isto depois de me ter posto cá e de me ajudar a transmitir a chama imensa aos pequenos grandes benfiquistas com as camisolas. Não construiu um hotel no Camboja (ainda!), mas quero que saiba que acabou de dar o aval para construir uma casa. Não deu quartos espaçosos e de luxo, piscinas ou jacuzzis para os turistas desfrutarem, deu um tecto e saneamento básico para os nossos pequenos grandes benfiquistas viverem. Eles e eu não temos como lhe agradecer. Não sonha o alívio que foi quando percebi que ia conseguir deixar estes miúdos numa casa em condições e com o que eles precisam para continuarem felizes. Eles merecem tudo e o tio, sem sequer os conhecer, acabou de lhes dar talvez mais do que tudo aquilo que eles já receberam na vida. Um sincero e comovido obrigado.
Além das compras de hoje, também foi tempo de virar arquitecto. A planta da nova casa está feita. O Bel ficou parvo ao vê-la e concordou com tudo. Mostrei então aos miúdos que adoraram e, finalmente perceberam a figura de parvo que o friend Zé fez no domingo ao medir, em passos porque não há fitas métricas, tudo o que era distância na nova casa e algumas coisas da velha como as camas ou a cozinha. O entusiasmo para começar a construir já todos temos. O material está a caminho.




Agora a parte difícil. O relato mais difícil de todos. De todas as histórias tristes que assisto por cá,  a pior. Ou pelo menos, a que mais me custa e mais me deixou amargurado.
Os meninos do touch a life, ainda que não tenham mais nada, têm o touch a life que lhes garante comida todas as semanas. Os meus pequenos grandes benfiquistas, ainda que tenham muito pouco, têm dinheiro para comer, têm-se uns aos outros e têm adultos com eles. Têm o mercado como fonte de rendimento, ainda que insuficiente. Aos meus pequenos grandes benfiquistas, como já disse, não aceito que lhes falte nada. Mas aos que estão actualmente na Kilt juntam-se mais 2 pequenos, que jamais serão esquecidos – o Lay e o La. Os filhos da cozinheira com quem lidei horas a fio nas primeiras semanas e tiveram que ir embora da Kilt com a mãe. Aqueles dois miúdos fantásticos, por quem tenho um carinho enorme, que têm uma bicicleta nova e estão prontos para começar a escola. Aqueles que se recusavam a lavar os dentes, qu não diziam uma palavra de inglês mas tanto me acarinharam no inicio.
Se bem se lembram, faz uns 10 dias que fui visitá-los com irmão mais velho deles. Levei comida, os uniformes para a escola, os ténis e dinheiro para a bicicleta. Além disso, deixei mais $50 para eles se aguentarem uns tempos. O irmão mais velho - o Sarath, foi visitá-los domingo. Ontem, com a doença, acabei por não o ver. Hoje perguntei-lhe por eles no inicio da aula. A resposta foi muito evasiva, disse que estavam contentes com a bicicleta que tinha oferecido e entusiasmados para começarem a escola. Mas não sei, faltou o entusiasmo e aquele brilho nos olhos habitual quando me dá boas noticias dos irmãos. À tarde, no mercado, voltei a falar com ele. Apertei com ele para que ele falasse comigo e em boa hora o fiz.
Vi, pela primeira vez num dos meus pequenos grandes benfiquistas, revolta e angústia. Vi um Sarath, uma verdadeira jóia de moço, agressivo a querer bater e lutar com alguém. Vi lágrimas nos seus olhos e ele quase viu nos meus. A explicação é fácil. Alguém me deve ter visto  a deixar o dinheiro àquela pobre mãe que acabou por ser roubada. Relatou-me o momento, dizendo que a mãe chorava e implorava, assim como os miúdos, para que não lhes levassem o pouco, e único, dinheiro que tinham. Desde então, eles simplesmente não têm o que comer. O Sarath disse-me que eles estavam esfomeados e um deles ferido numa mão. Contou-me que a mãe tentou ir trabalhar e, enquanto escavava (foi o que percebi no seu inglês/linguagem gestual), caiu para o lado porque o trabalho era duro, estava muito calor e, la está, o estômago estava vazio. Os dois pequenos assistiram. O Sarath contou-me em desespero, como quem não tem mais ninguém com quem falar, como quem não tem mais ninguém a quem recorrer. Não o queria fazer de inicio porque a mãe lhe tinha pedido para não me dizer nada, tinha vergonha. Tinha sido o meu dinheiro, vosso na realidade, e que era destinado aos dois pequenos grandes benfiquistas. Ela sentia-se mal por não ter sido. 
Fiquei, também eu, revoltado, chateado e com vontade de bater em alguém. Pela primeira vez, em frente dos meus pequenos, vieram-me as lágrimas aos olhos. Prometi ao Sarath ir com ele ver os irmãos na sexta-feira. Os rapazes que estavam no mercado a ouvir a conversa, pediram-me para irem também ver os amigos que tanto precisam. Prometi não levar dinheiro, mas muita comida. O mais velho ajudou-me a escolher o que levar, ele sabe o que é melhor para estas coisas. Falou-me em arroz, açúcar e mais duas coisas que não sabe dizer em inglês mas ficou de me mostrar amanhã. Qualquer sugestão vossa é bem-vinda. Sexta-feira vamos todos de mochila às costas com comida, ajudar aqueles rapazes que tanto merecem e que não têm culpa nenhuma daquilo que a vida lhes deu. O Lay e o La têm 10 e 4 anos, respectivamente e... não sei. Não sei mesmo. Agora levo comida, mato-lhes a fome. Garanto-lhes também comida para os próximos tempos. Antes de ir embora, posso garantir-lhes mais umas semanas sem fome. Mas e depois? Volto para Portugal, o stock de comida acaba-se e o que será feito daqueles dois anjos? O que será feito daquela mãe? O que será feito do Sarath ao ver a sua família com fome sem nada conseguir fazer? O que será feito dos meus pequenos grandes benfiquistas, que têm um coração do tamanho do Mundo, ao saberem que dois amigos não têm nada para comer? O que será feito de mim que regresso a Portugal sabendo que, num curto espaço de tempo, vão haver dois dos meus com as barrigas vazias a implorar por comida? Não quero pensar. Ou melhor, quero pensar muito. Quero pensar o tempo suficiente para encontrar uma solução. Tenho 3 semanas para o fazer e não, deixá-los literalmente a morrer à fome não é solução. Não pode ser solução.  Não aceito que seja.

4 comentários:

  1. Ainda bem que já estás melhor, com o que tens visto e com as realidades com que te tens deparado, não há doença que resista!
    Toma atenção, não te tenham topado, a ajudar financeiramente a família. Quando lá fores novamente, leva algum dinheiro (muito pouco), mas como tu dizes especialmente alimentos. Se fores "abordado" tens pouco dinheiro, mas algum.
    Quanto às sanitas, que devem ser do tipo turco, é mesmo para agachar e não fazer de pé.(quer dizer, no teu caso e dos meninos o "xixi" pode ser mesmo em pé). Para o resto,a diferença é que literatura na casa se banho fica comprometida(começa a dar dor de pernas).

    ResponderEliminar
  2. Uma pergunta: esses dois miúdos não podem voltar para a Kilt e estarem junto ao irmão mais velho?

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Por algum motivo saíram. A Kilt não precisa de mais crianças, antes de chegar tinham saído mais três. Estes foram embora com a mãe, pois a cozinheira é nova. O mais velho ficou só por causa da escola... Depois de ir lá posso tentar falar com o Bel, mas mesmo assim seria afastá-los da mãe deles...

      Eliminar
  3. Este comentário foi removido pelo autor.

    ResponderEliminar