Desde o primeiro dia que sempre procurei, com este blog, partilhar
convosco, família e amigos, a minha experiência no Camboja, mais o que de bom acontece
que o mau. Creio que entre as histórias dos monges, dos bichos, da comida e a
alegria das crianças consegui arrancar-vos muitos mais sorrisos que lágrimas, o
que é óptimo. Tentei sempre escrever aquilo que fiz, vivi e senti duma maneira
sincera mas a puxar sempre para a brincadeira. Fi-lo convosco e comigo. Claramente
não vim para aqui brincar, mas não soube lidar com tanta emoção sem ser em tom
de brincadeira.
Hoje, desculpem, mas não consigo brincar, não há espaço para piadas ou “poesia”. Hoje os meus olhos viram uma realidade que nunca
pensei ver na vida. Ainda estou arrepiado. Vivi uma realidade que claramente
não estava preparado para viver nem nunca pensei viver. Tinha dez dias de Camboja
e já achava que tinha visto muita coisa, já me sentia diferente. Depois do dia
de hoje, acho que nunca mais serei o mesmo. Não fui feito para isto. Quer dizer, acho
que qualquer ser humano, digno de ser chamado como tal, não o foi nem está
preparado para enfrentar tanta emoção até ao momento em que se depara,
frente-a-frente e olhos-nos-olhos, com a triste e aflitiva realidade que tão presente está por
este mundo. Nós, no nosso pequeno mundo, sabemos que existe mas nem temos
coragem de a procurar. Estou revoltado, indignado, chocado, não sei… faltam-me
as palavras. Tirei algumas fotos. Partilharei por
aqui algumas, muito poucas, outras ficarão apenas comigo. Outros momentos ficarão "só" guardados, para sempre, na minha memória. Jamais teria coragem de fotografar ou me
lembraria de tal coisa.
Vamos por partes. Sábado, não há aulas para dar e estava
dispensado da minha “missão” com os meus pequenos grandes benfiquistas. A opção
podia passar por dormir até tarde, fazer a vida de turista ou de magnata e
andar nas piscinas dos bons hotéis que por cá existem. Porém, ouvi falar do
touch a life e decidi experimentar. Afinal foi para isso que vim e tem sido isso que
me tem deixado contente todos os dias por cá. Resumidamente, o touch a life é
uma organização internacional destinada a ajudar os mais pobres. Procura trazer esperança a quem não
a tem e restaurar a dignidade humana. Partilho alguns links para os mais interessados:
- http://www.touchalife.org.my/main/about-us/about-us.html
- http://cambodiacalling.blogspot.com/2010/05/touch-life-food-programme-in-siem-reap.html
- https://www.youtube.com/watch?v=-YqDsNa0yh0
- https://www.youtube.com/watch?v=4P1glTp3UIA
6 da manhã acordei eu, provavelmente ainda nenhum de vós se
tinha deitado. Às 7 estava a “trabalhar”. Fui recebido de braços abertos por
pessoas que simplesmente trabalham arduamente “for free” e dedicam toda uma
vida aos outros. Ainda há gente boa neste mundo e sou um sortudo por me ter
cruzado com elas. Ao todo contei 17, desde australianos até paquistaneses,
passando, claro está, por cambojanos. Ao som de variadíssimas músicas, algumas delas
adaptadas como o “money, money,
let’s help children, in Cambodia”, começámos por cortar infinitos
vegetais - cebolas, cenouras, beringelas, etc, etc, etc. Alguidares cheios, muitos
alguidares. Com a minha habilidade com facas ganhei logo uma nova marca na mão,
tudo resolvido. Enquanto isso, um senhor fazia omeletes e alguns locais tratavam
do arroz. Lá para as 10.30h (vejam as horas que passaram) começámos a empacotar
o arroz. Fiquei na tarefa "dos homens" que consistia em esmigalhar arroz numa
taça pequena de modo a fazer 400 gramas. 2 pessoas encarregavam-se de pesar e
certificar-se de que todas as embalagens tinham as 400 gramas certas. Outras 2
embrulhavam o papel, mais 2 para colocar os elásticos, 1 para contar e outro
para arrumar. De 50 em 50 festejávamos e… quase chegámos às 700, ou seja, estamos a
falar de quase 280 kgs de arroz. Toda a comida é oferecida por caridade.
Seguiu-se a sopa, distribuir doses iguais por pequenos sacos de plásticos, as
mesmas quase 700 unidades. Omeletes igual. Pelo meio almoçámos, claro está,
arroz com sopa e omelete. Estava bem bom. Eram quase 4 da tarde quando acabámos
e o resultado está à vista, só faltava ir entregar.
Sacos com o arroz e cestos com omeletes |
Mais omeletes no topo |
Sacos da sopa |
Para a entrega fomos 7, 2 numa mota, 1 a conduzir o tuk-tuk e
4 cá atrás a segurar toda a infinita comida que tão finita se tornou. Eu era um
desses 4. Começou a viagem no tuk-tuk. Custava a andar tal era o peso
que suportava. Fomos-nos afastando da cidade. A estrada foi ficando cada vez
pior, mais e mais buracos no meio da terra. Os mosquitos começaram a aumentar.
As casas deram lugar a cabanas. Primeiro paredes feitas de placas de metal e um
tecto igualmente de placas de metal. Às tantas, as paredes deram lugar a troncos de árvores e o tecto a
panos. A cama, quando existia, era uma rede presa entre os troncos.
Já a fila estava no fim |
Fizemos umas 4 paragens no total e aquelas 2 horas tiveram
de tudo. Vi pessoas daquelas que são carne e osso, sabem? Aquelas que vimos
muito raramente na televisão e, simplesmente, achamos que não é possível que
existam. Vi com os meus olhos aqueles corpos onde facilmente se contam costelas
e me interrogo como se metem de pé. Vi pessoas a correr desesperadamente atrás
do tuk-tuk a implorar comida ou medicamentos. Vi crianças doentes e com feridas
de cortar a respiração. Vi filas com dezenas, talvez centenas, de pessoas atrás do tuk-tuk para receberem comida. De entre essas pessoas não
contei nem 10 adultos, era tudo crianças. Os meus olhos foram ficando molhados,
o lábio inferior começou a tremer. Era o 1º naquele tuk-tuk, ou seja, enquanto
os outros organizavam a comida, eu tinha a tarefa de recolher os sacos/cestos
da mão das crianças e devolver-lhes com comida. Tinha que sorrir para elas mas, às tantas, deixei de conseguir. Fomos entregando a comida e, do nada, o tuk-tuk estava vazio.
Saímos lá de dentro e afastei-me um pouco. Os outros voluntários já estão habituados a isto pois a iniciativa leva 7 anos por
cá e é feita 3 vezes por semana (o que significa dizer que estas pessoas têm 3 refeições boas por semana). Foi então que as crianças me começaram a abordar. Agarravam-me,
trepavam o meu corpo. Tinha 1, 2, 3, 4 em cima de mim. Agarravam-me as pernas
com imensa força e não largavam, sentavam-se no chão agarrados a elas e
simplesmente não me deixavam andar. Abracei mais de uma centena de miúdos, peguei
ao colo igual número. Dava rodas sobre mim mesmo com eles nas cavalitas e no
colo e tanto que eles riam. Afinal, são crianças. Fazia igual com eles pendurados nos meus braços, esticava
os braços, eles agarravam-se e lá íamos nós. Chegava a ter 2 em cada braço, 3 já
era difícil levantar, 4 impossível. Alguns deles estavam nus e ali,
agarrados a mim, com a pele enrugada da porcaria acumulada e o cabelo empapado, nos meus braços, nas minhas pernas, ao meu colo, às minhas cavalitas ou simplesmente a
trepar-me. Davam-me os abraços mais fortes que já alguém me deu na vida. Eu
tentava chegar a todos mas era difícil. Com o tempo e ajuda dos outros voluntários lá foram dispersando com os seus sacos de comida. Foi tempo de voltar para casa...
Após falar com a responsável da organização, felicitá-la por
tudo o que ela faz, dizer-lhe para contar comigo no próximo sábado, e no outro, e no outro, e no outro (por certo estarei lá) e, receber como que um certo apoio psicológico
porque, como ela disse e bem, era a primeira vez que tinha feito aquilo e só quem
o faz sabe o que aquilo é, foi tempo de chegar ao quarto e cair em mim. Pela
primeira vez desde que aqui estou, senti-me sozinho e completamente desamparado.
Tomei banho, mudei de roupa (acho que nem na minha infância tinha estado tão
porco) e não quis estar sozinho.
Fui ao mercado ter com os meus pequenos grandes benfiquistas que
estavam por lá a vender as suas peças. Parece
que com eles tudo fica mais fácil. Pedi para, entre eles, escolherem um colar
para mim e comprei-o. Consegui apelar à compaixão duma chinesa e vender outro
(tão contentes comigo que eles ficaram), comprei 2 pizzas para os 6 (mais uma
alegria) e vejam como eles estavam lindos. Falei com o mais velho, talvez por
isso o mais envergonhado também, e no conversa puxa conversa, percebi que ele gostava de
pintar. Pedi-lhe que me mostrasse os seus desenhos, ele abriu-me um livro que
tinha por baixo da banca com algumas imagens e desenhos lindos que ele tinha
feito. Disse-lhe que ele não podia ter vergonha e tinha
que começar a vender aquilo. O acordo ficou fechado – escolhi uma
imagem que ele irá pintar e essa será a primeira venda dele, a mim. A primeira de muitas vendas, estou certo. Do nada, aqueles heróis que por vezes confundo com alunos, fizeram-me esquecer, por momentos, aquilo que tinha vivido e, neles, encontrei o suporte que precisava.
Agora é hora de ir dormir, amanhã será um novo dia…
Estou cansado, tenho os braços arranhados e vermelhos de tanto puxão que foram alvo, doí-me o corpo todo mas a dor maior vem, sem duvida, cá de dentro...
Ouvi dizer que estavas ofendido por não ter comentários neste post. Fica a saber que li, e simplesmente fiquei sem palavras. Pouco ou nada tenho a dizer face a tudo o que escreveste.
ResponderEliminarFico feliz que queiras voltar a faze-lo nos próximos sábados, nem toda a gente o consegue fazer.
Beijinho da prima que tem muito orgulho no primo que tem
Obrigado Leonor.
ResponderEliminarOfendido não, apenas acho "curioso" o silêncio de todos. É porque mesmo longe conseguem imaginar o que por cá se passa.
Olá zé, tenho a dizer-te que estou deliciada c as tuas publicações. Ainda não csgui ler todas, mas daquilo que já tive oportunidade de ler achei simplesmente fantástico. Isto é quase como aqela velha maxima do "nao percam o próximo episódio. .. " :D keep going teacher zé, u're doing the right thing ;)
ResponderEliminarPs. Vou querer uma pulseira! Beijinhos
Muito obrigado pelo incentivo. É bom saber que as pessoas gostam.
EliminarTemos que tratar da venda da pulseira sendo assim, os miúdos agradecem!