quarta-feira, 29 de julho de 2015

Na aula do teacher Zé, vale tudo menos tirar olhos

Ontem foi dia de mercado, terça-feira. Foi dia do rapaz mais velho expor também os seus desenhos pela primeira vez. Ninguém comprou, ainda. Para vos contextualizar, estamos na época baixa cá (“rainy season”) e estava a chover, pelo que o mercado estava quase deserto. Antes de vir, foi-me dito que nesta altura eles podiam não ter comida na mesa por estarem semanas e semanas sem vender no mercado. Quando cheguei, conferi que eles realmente nada vendiam na maioria dos dias. Parte surpreendente: ontem batemos o record. Melhor dia em receitas e nº de peças vendidas, 9 no total. A razão é simples, os miúdos tornaram-se vendedores. Antes tinham uma bola para jogar atrás da sua barraca e ficava o mais velho lá sentado a marcar presença. Na semana passada comecei eu a abordar pessoas, com eles a ver e a rir da brincadeira. Comecei a insistir com eles para fazerem igual. Actualmente, ninguém passa pela nossa barraca sem que um miúdo pergunte se não quer comprar nada. As instruções seguintes são para, enquanto as pessoas olham para a bijutaria, meterem conversa e perguntarem coisas como “where are you from?”. A partir dai, basta serem eles próprios, mandarem os seus sorrisos lindos e as suas calinadas no inglês e, os próprios clientes tratam de gerir a conversa. No fim, a venda está consumada. O resultado está à vista e é muito importante mesmo, deixa-me muito mais descansado. Pelo menos sei que comigo cá ou em Portugal, se eles souberem vender e continuarem assim, jamais passarão fome. Devo confessar que o método não foi o mais apropriado. Para os entusiasmar criava eu próprio diálogos a explicar o que deviam dizer. Pelo meio dizia frases como “if you don’t buy, I will hit you” ou “Buy or fight?”. Eles são espertos e sabem que estava na brincadeira, mas riam-se e entraram neste jogo de ser vendedor. Fazer-lhes caretas por trás dos clientes enquanto eles os abordavam também foi estratégia muito bem aceite. Bom ou mau, o método foi eficaz! Era o que me interessava.

Agora as aulas, se é que ainda lhes posso chamar de aulas. Eu adoro dar as aulas e eles também parecem gostar de as ter. As raparigas mais velhas, muitas vezes, têm que ficar com os bebés. Quando cheguei era uma óptima desculpa para faltarem à aula, agora perguntam-me se os bebes também podem ir. Claro que digo que sim, gosto de alunos novos. Alguns rapazes ao inicio iam dormir quando vinham da escola ou arranjavam actividades, como arrumar o quarto, para não se sentarem na antiga sala onde chovia. Faz hoje 2 semanas que não faltam. Aqueles que, por algum motivo, não vão às aulas de khmer assistem de manhã e de tarde, dantes também só iam a uma. Às faltas que tive no início, tinha instruções para avisar o responsável. Nunca o fiz, disse apenas aos miúdos que podiam ir dormir, ficar com os bebés ou simplesmente fazer outra coisa quando quisessem desde que me avisassem para não me preocupar. Até lhes disse que compreendia as faltas porque inglês é aborrecido e eu próprio odiava ter aulas. Nunca mais nenhum faltou e, quando chove principalmente, também os cães e as galinhas assistem. É muito bom contactar estes factos mas também não admira, vejam porque.
Na aula do teacher Zé, vale tudo menos tirar olhos. Vale falar quando quiserem, desde que seja em inglês. Vale cantar, desde que sejam músicas em inglês. Vale empurrar a cadeira quando o colega do lado se vai sentar, desde que garantam que ele cai redondo no chão para ser engraçado. Vale saltar, andar, correr, pintar, desenhar, beber água, falar, cantar, gritar, o que quiserem, desde que me digam em inglês o que estão a fazer. Esses verbos já os sabem todos!  Vale estar de pé ou deitado em cima da mesa, desde que vão escrevendo e fazendo os exercícios. Vale torneios de braço de ferro, flexões ou elevações nas árvores, desde que aprendam a dizer forte e fraco. Vale levantar as mesas, desde que aprendam a dizer pesado e leve. Vale baterem-se uns aos outros, no meio das brincadeiras muitas vezes figim que vão fazê-lo, desde que primeiro batam no teacher Zé. (Sim, esta regra existe mas eles têm-me respeito). Além disso, há rebuçados para quem acerta os exercícios. Também podem escolher o que querem fazer e que aula querem ter. Assim, podem escrever menos no quadro, podem aprender menos gramatica, mas todos se fartam de falar. Eu corrijo-os quando dizem mal as coisas ou ensino-os quando tentam dizer coisas que não são capazes. Assim, estão fartos de aprender. Muitas vezes, são professores uns dos outros. É engraçado pedir aos miúdos entre os 10 e os 13 anos para escreverem os dias da semana ou os meses do ano e eles responderem que não precisam de escrever porque já sabem. Aí chamo-os de professores e mando-os explicar aos mais pequenos. Eles entusiasmados vão ensinar, como? Escrevendo numa folha para os pequenos verem e copiarem para os seus cadernos. Enquanto escrevem percebem que eles próprios, afinal, não os sabem escrever e pedem-me para soletrar. Os mais pequenos, ao verem os amigos a ensinar, acham o máximo e copiam tudo. Muito fácil certo?
Mais engraçado é quando me sento mesmo no lugar deles e deixo que seja um deles a dar a aula, com aviso prévio que é para a coisa vir já pensada e eles andarem entusiasmados com as aulas que os amigos vão dar. Um adora cantar, passa a vida a cantar, outro gosta de rap e beat box, passa a vida a fazer barulhos esquisitos com a boca. Esta semana houve aula de canto em que só tive que imprimir folhas com as letras das músicas que o professor escolheu, e aula de beat box em que “só” tive que fazer eu próprio os baralhos com a boca, ser gozado pelos miúdos todos que choravam a rir, para que o professor perdesse a vergonha e começasse então a aula.
Em semana de circo, também ensinei, com pedras, o muito pouco que sei de malabarismo. Não têm feito outra coisa e uns já dominam. Como habilidade puxa por habilidade, cada um vai mostrando o que sabe. Tenho verdadeiros tesouros das aulas, que deveriam ser de hora e meia mas passam as 3 horas, gravados no telemóvel, partilho alguns. Enjoy (Os videos ao passar para o blog perdem substancialmente a qualidade, no meu computador estão bem melhores. Mesmo assim, quem segue o blog no telemóvel e não consegue abrir os vídeos, acho que justificam um saltinho ao computador para ver).













2 comentários:

  1. Grandes alunos que tens! Imagina-te a ti e aos teus colegas de liceu com um professor que os deixasse fazer o que lhes apetecia...
    No entanto acho que tens sido um "Grande professor", no meio das macaquices, eles falam inglês e especialmente aprendem a vender que é a base do seu sustento. Com essa aprendizagem, podes ficar com a sensação de "missão cumprida", não só os alegras e ofereces-lhes coisas durante a tua estadia por aí, como podes ficar tranquilo uma vez que eles aprenderam também técnicas de vendas (in english)!

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  2. Os teus alunos cantam melhor que qualquer um das três turmas que tive o ano passado. Educação e vontade de aprender incríveis, em comparação com as turmas alegadamente civilizadas dum país "mais desenvolvido" que o Camdoja.
    Dá-lhe, Zé!

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