quarta-feira, 9 de setembro de 2015

Epilogo

A vida fez-me atravessar o planeta e instalar-me num tal de Camboja. Em boa hora o fez.
Séculos de colossais templos, anos de guerra sangrenta e monstruosos holocaustos. Além de pobre, era de esperar um país triste e de pessoas frias. Não é. As pessoas são as mais prestáveis e afáveis que alguma vez conheci na vida, nos muitos sítios por onde já andei. Qualquer ida à rua, ao café, ao restaurante, à lavandaria ou ao mercado é uma oportunidade para fazer amigos.
Fui recebido naquele país quente e empoeirado com infinitos sorrisos. Depois de 2 meses em Siem Reap, compreendo aqueles que se apaixonaram pelo Camboja. A mais de 10000 kms de distância, numa cidade cheia de contrastes onde tudo é diferente de Portugal, tenho um sentimento de pertença difícil de descrever. Sentia-me em casa, sentia-me bem.
Pode parecer que pouco ou nada tem, mas o Camboja deu-me tudo o que precisei para viver aqueles que foram os melhores 2 meses da minha vida. Acima de qualquer outra coisa, deu-me a oportunidade de conhecer 14 pequenos grandes benfiquistas e esses, esses valem muito mais que qualquer me*** que tenha em Portugal.
No Cambodja mudei radicalmente, mudar é conhecer. Há 2 meses sabia que havia pobreza, hoje conheço a pobreza. Há 2 meses desconfiava que houvessem pessoas realmente boas que vivem-se com o propósito de ajudar o próximo, hoje conheço uma infinidade de pessoas assim. No Cambodja cresci, cresci mais nestes 2 meses que em anos de vida. Aprendi a adaptar as minhas expectativas e, sobretudo, tornei-me bem mais humilde. Mudei perspectivas. Os meus problemas, ou aquilo que até aqui chamava de problemas, tornaram-se ridiculamente pequenos. Questionei todas as minhas prioridades e hoje olho para o mundo de outra forma.
Podia afirmar, como outros voluntários o fizeram, que no Cambodja se sobrevive às adversidades mas estaria a mentir. No Cambodja, vive-se alegremente na adversidade. Mas vive-se. Na Europa, sobrevive-se nas facilidades a olhar para o próprio umbigo e a reclamar por tudo e por nada, por mais e mais. No Cambodja, o egoísmo dá lugar à partilha, a ganância à oferta, o desespero à fé, a desistência à luta e a tristeza à felicidade. Morre-se muito mas vive-se mais. Chega-se ao fim doo dia de bolsos vazios, mas de coração cheio.
Fazer a diferença é tarefa hercúlea por aqueles lados. Ingenuidade minha pensar que chegava e, num abrir e fechar de olhos, corrigia desigualdades, melhorava vidas e alterava tremendas injustiças. Os meus pequenos grandes benfiquistas continuam pobres, a viver em barracões, sem saneamento básico e a comer arroz a todas as refeições. Mas fizeram-me ver que eram as pessoas mais ricas com que já me cruzei na vida.
É gigante o que se recebe, parece pequenino o que se deixa.
Ainda assim, no meio do turbilhão de emoções em que me encontro e que foram estes 2 meses, estou contente o orgulhoso. Estou triste e já cheio de saudades, não passa meia hora sem me lembrar dos meus pequenos grandes benfiquistas mas estou contente porque sei que, apesar de não ter feito a diferença, deixei uma marca naquelas vidas. Sei que estes 2 meses foram 2 óptimos meses na vida deles, onde vivemos momentos fantásticos e, de certa forma, consegui contribuir, ainda que pouco, para o futuro deles. Só por isso, valeu a pena.
Sei  que fiz muito mais para além das 4 horas diárias de inglês que era suposto dar. Sei que os meus pequenos grandes benfiquistas já tiveram muitos voluntários, mas tenho a certeza que sou daqueles que vão recordar. Como eles disseram, fui o único que não falhou um dia de mercado, que lhes oferecia comida todos os dias. Fui o único que esgotou todos os programas que eles queriam fazer. O que estava com eles todos os dias, horas a fio. Dadas as circunstâncias, o único que andou nas obras. O que os ias buscar à escola, lhes via as notas e cadernos e lhes tirava as duvidas daquilo que conseguia. Já tiveram muitos voluntários, mas só agora houve um mail criado ou um skype para que o contacto continue. Fui o único a quem eles chamaram de pai ou diziam que queriam que fosse o pai deles. Por certo, também fui daqueles que mais recebeu deles. Isso enche-me de orgulho. Sei que me entreguei de corpo e alma, abdiquei de viagens ou planos turísticos e em nada me arrependo. Vivi, vivi muito, vivi ao máximo o tempo com eles. Eles compensaram qualquer "esforço" que não foi esforço nenhum. Não há melhor sensação na vida que chegar ao fim do dia estafado mas com a sensação de dever cumprido. Não há melhor que ver os resultados dos nossos actos em 14 sorrisos de pequenos grandes benfiquistas que me davam muito mais que eu a eles, através dos seus gestos e palavras, 
No Camboja conheci-me, encontrei talentos que desconhecia por completo. Fui ciclista e mecânico de bicicletas. Fui jogador e treinador de futebol. Fui embaixador da marca Benfica. Fui malabarista, palhaço e entertainer. Fui ginasta e bailarino. Fui baterista, músico e cantor. Fui pintor. Fui incendiário e bombeiro.  Fui cozinheiro. Fui barbeiro. Fui lavrador e apicultor. Fui carpinteiro. Fui comprador e vendedor. Fui o marketer daquele negócio. Fui arquitecto e engenheiro. Fui pedreiro e doméstico. Fui farmacêutico, enfermeiro e médico. Fui educador de infância e explicador de matemática. Fui psicólogo. Talvez tenha sido professor. Fui o comandante daquele exército, o maestro daquela orquestra. Acima de tudo, fui feliz.
Tentei ser a mãe Carmo que manda as crianças lavar os dentes e tomar banho e sofre por elas como se do próprio sofrimento se tratasse, o pai Zé Manel que os protege e defende com unhas e dentes e olha para os seus umbigos antes de olhar para o seu, a mana Mary em estado party animal capaz de aguentar toda e qualquer brincadeira com os pequenos. Tentei ser o tio Zé que os cativa e entusiasma com o Benfica como ninguém e dás lhe tudo o que consegue, a tia Sofia que os enche de abraços, mimos e lhes diz palavras bonitas e sinceras sem qualquer vergonha, a tia Maria que na ausência de pais se multiplica e faz o que tem que ser feito quando tem que ser feito por eles e o tio Ricardo que manda sempre a piada capaz de os fazer desmanchar a rir em qualquer circunstancia. Tentei ser a avó Lili que os leva ao restaurante, lhes dá chocolates e manda as palavras sábias quando a tristeza aparece, o avô Pepe que mantém o respeito e autoridade a controlar tudo fingindo não querer saber de nada, a avó Quica que lhes pergunta as notas da escola e se preocupa com aquilo que eles comeram e irão comer, o avô Ventura que relativiza tudo e perante qualquer adversidade reage com força, coragem e sentido de humor, que se ergue nas dificuldades sem nunca baixar os braços. Fui, essencialmente, o avô Ventura. Acima de tudo, fui feliz.

Por fim, os agradecimentos que jamais poderão ser esquecidos. Um obrigado  do fundo do coração a todos aqueles que tornaram isto possível, obrigado a todos os que decidiram ajudar os meus pequenos grandes benfiquistas. Eles, mais que qualquer outra pessoa, merecem ser ajudados. Eles, mais do que qualquer outra pessoa, dão valor à ajuda que lhes chega.
Obrigado Hugo Ribeiro, obrigado Margarida Rosa, obrigado Ângela Raposo, obrigado Daniela David, obrigado Diogo Campaniço, obrigado Sophia Medeiros, obrigado Mary, obrigado Maria Inês Rosa, obrigado Débora Alface, obrigado Isabel Pina, obrigado Vasco Lebre, obrigado Teresa Brissos, obrigado Tia Sofia. Juntos batemos records de vendas naquele mercado e, juntos enchemos a barriga daqueles miúdos por diversas ocasiões naquela que é, por norma, a altura do ano mais complicada do ano para eles. Foram encomendas quase todos os dias de mercado, temo ter-me esquecido de várias. Foram mais de 200€ que, apesar de a dividir por 14 barrigas, fizeram toda a diferença por lá. Em nome dos meus pequenos grandes benfiquistas, um obrigado enorme.
Um obrigado ainda maior a todos aqueles que, sem receber nada em troca, contribuíram e tornaram tudo possível. Obrigado Hugo Ribeiro, obrigado Isabel Lima, obrigado Marta Braga, obrigado avó Lili, obrigado avó Quica, obrigado pais, obrigado tia Maria e obrigado tio Zé. Juntos comprámos comida para os pequenos grandes benfiquistas, comprámos tanques, sanitas, pedras e cimento para a casa nova deles, comprámos espelhos e cabides para os seus quartos, comprámos pizzas, noodles ou fruta em todos os dias de mercado aos vendedores, pão, atum, águas e sumos aos pedreiros em todos os dias de obra, comprámos quadros para a escola, comprámos mochilas, comprámos brinquedos para todos eles, comprámos kits de higiene para andarem cheirosos e lavados, fomos aos relvados cambojanos jogar à bola, fomos ao circo, fomos nadar à praia, fomos comer ao restaurante, festejámos aniversários nunca antes festejados, pusemos 2 rapazes na escola e matamos-lhes a fome. Graças a vocês, mais coisas poderão ser feitas ainda que comigo em Portugal. Tenho tudo apontado e sei o que sobrou. Deixei muita coisa apalavrada também. O touch a life continuará a ser ajudado, comida para as 660 refeições aos sábados e para as mais de 100 durante a semana não faltará. Os meus pequenos grandes benfiquistas, assim que chegar a autorização para construir, também terão os materiais necessários. Camas e armários para os seus quartos novos também foram prometidos. Em meu nome, em nome da Mavis do touch a life, em nome do Bel da Kilt e em nome de 14 pequenos grandes benfiquistas, um enorme obrigado.

P.S.: Não me despeço por já, tenho 64 posts e vamos encerrar num número bonito e... em grande. O último, ainda por escrever, será inteiramente dedicado a uns tais pequenos grandes benfiquistas. 

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