Começou a épica feira da cuba. Mais um ano a falhar aquela festa
fantástica onde se perdem comboios ao meio-dia porque a noite da véspera ainda
está boa. Ainda assim, não trocava estes dias por nada.
Esta tarde voltei a ser aluno. A professora de italiano ensina frases e
nós praticamos em diálogos. Eu servia sempre de cobaia. Continuamos a inventar
supostos diálogos no mercado, onde nunca vi um italiano. Enquanto a professora
ensina expressões como “quanto custa?” eu mando-os perguntar como é que se diz “if
you don’t buy, I’ll hit you”. Eles riem-se com ar de gozo e damos cabo da
paciência da senhora, coitada. Ela até é simpática, e se muitas vezes parvejo,
quando ela começa a ficar chateada com tanta brincadeira também sou um aluno
exemplar. Mesmo assim, há muita palhaçada naquelas aulas.
Entretanto, os miúdos, tal como eu, começam a sentir que tudo isto está a
chegar ao fim. Não querem, eu muito menos quero que a aventura termine. Hoje, o
Sovann, o Chamrang e o Sarath tinham prendas para mim. 4 desenhos (o Sovann fez
2) dos melhores que eles já fizeram, com os melhores materiais que têm e embrulhados
em plástico para não estragar na viagem. O Sovann escreveu um texto que fiquei
de ler apenas em Portugal e no seu embrulho deixou também a única foto que tem
dele próprio, dada há uns anos por outro voluntário. Disse que queria que fosse
eu a ficar com ela para que nunca me esquecesse dele. Jamais o farei e o facto
dele me querer deixar com aquilo significou imenso para mim, um orgulho enorme. Se calhar também marquei a vida dos pequenos grandes benfiquistas, não foram só eles a marcar a minha.
Emoções à parte que o doloroso dia ainda não chegou, à tarde fomos jogar
futebol. Os rapazes todos juntos, rimos imenso naquele relvado, todos vestidos
à Benfica. Faltou o Chamrong, que ardia em febre e não estava capaz de jogar.
No fim, ofereci-lhe os meus ténis laranja à Cristiano Ronaldo. Ele, vaidoso como
é, adorou o presente e ficou de marcar muitos golos com os ténis que um dia
foram do teacher Zé. Por certo, os ténis são mais úteis a ele que a mim. Ele
dar-lhes-á melhor uso que eu.
A manhã foi de emoções fortes, fui chamado ao touch a life. Para além de cozinhar (hoje foi descascar ananás e picar alho) e
dar de almoço a mais de uma centena de crianças que, durante a semana, vão
comer àquela casa, havia um programa diferente para o qual tinha que estar presente.
A chama imensa voltou a aparecer, a novos miúdos mas recebida com a
mesma alegria. Os equipamentos que tinha deixado no touch a life foram hoje distribuídos por meninos cambojanos que, à semelhança dos meus, pouco ou nada têm. Um por um foram vestindo o manto sagrado e seguiram para
o campo de futebol improvisado. Começamos então a jogar um futebol que nem
balizas tinha, era apenas correr atrás duma bola numa excitação imensa por
terem equipamentos novos e bons, da melhor equipa do mundo como fiz questão de
lhes explicar, o Benfica. Mais uns fâs, mais umas crianças felizes. Que orgulho que é conseguir proporcionar estes momentos. Todos os adultos o touch a life estávamos particularmente contentes hoje.
Naquela casa cresci
enquanto ser humano, conheci pessoas fantásticas, ouvi histórias incríveis e
vivi momentos que levarei para sempre comigo. Ali aprendi o que é realmente
praticar o bem. Ali aprendi o que é realmente passar mal. Ali são ajudadas
centenas de crianças pelas pessoas mais incríveis que já tive oportunidade de
conhecer. Pessoas de todo o Mundo, pessoas que deixaram tudo para se dedicar
aos outros. Doentes, aleijados, ex-alcoólicos, sobreviventes de catástrofes de
avião, responderam às adversidades da vida com a sua generosidade. Deixaram famílias
e amigos para trás com o único propósito de combater a fome das crianças cambojanas.
Gostava de ser como eles, de viver a palavra generosidade como eles
vivem. Estou muito longe disso. Fica a última foto, da família touch
a life a despedir-se de mim. Chamo de família porque, assim como a Kilt,
foram a minha família nestes 2 meses. Não podia ter tido melhor sorte. Em família
vi e presenciei momentos que jamais me esquecerei. Já os relatei, é escusado
repetir. Quem os vive sabe do que falo, quem apenas lê está muito longe de
imaginar.
Até breve touch a life. Desejo que por
mais voltas que a vida dê, tenha a sorte de voltar a esta casa, de me cruzar com mais pessoas como estas.
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