quarta-feira, 9 de setembro de 2015

Epilogo

A vida fez-me atravessar o planeta e instalar-me num tal de Camboja. Em boa hora o fez.
Séculos de colossais templos, anos de guerra sangrenta e monstruosos holocaustos. Além de pobre, era de esperar um país triste e de pessoas frias. Não é. As pessoas são as mais prestáveis e afáveis que alguma vez conheci na vida, nos muitos sítios por onde já andei. Qualquer ida à rua, ao café, ao restaurante, à lavandaria ou ao mercado é uma oportunidade para fazer amigos.
Fui recebido naquele país quente e empoeirado com infinitos sorrisos. Depois de 2 meses em Siem Reap, compreendo aqueles que se apaixonaram pelo Camboja. A mais de 10000 kms de distância, numa cidade cheia de contrastes onde tudo é diferente de Portugal, tenho um sentimento de pertença difícil de descrever. Sentia-me em casa, sentia-me bem.
Pode parecer que pouco ou nada tem, mas o Camboja deu-me tudo o que precisei para viver aqueles que foram os melhores 2 meses da minha vida. Acima de qualquer outra coisa, deu-me a oportunidade de conhecer 14 pequenos grandes benfiquistas e esses, esses valem muito mais que qualquer me*** que tenha em Portugal.
No Cambodja mudei radicalmente, mudar é conhecer. Há 2 meses sabia que havia pobreza, hoje conheço a pobreza. Há 2 meses desconfiava que houvessem pessoas realmente boas que vivem-se com o propósito de ajudar o próximo, hoje conheço uma infinidade de pessoas assim. No Cambodja cresci, cresci mais nestes 2 meses que em anos de vida. Aprendi a adaptar as minhas expectativas e, sobretudo, tornei-me bem mais humilde. Mudei perspectivas. Os meus problemas, ou aquilo que até aqui chamava de problemas, tornaram-se ridiculamente pequenos. Questionei todas as minhas prioridades e hoje olho para o mundo de outra forma.
Podia afirmar, como outros voluntários o fizeram, que no Cambodja se sobrevive às adversidades mas estaria a mentir. No Cambodja, vive-se alegremente na adversidade. Mas vive-se. Na Europa, sobrevive-se nas facilidades a olhar para o próprio umbigo e a reclamar por tudo e por nada, por mais e mais. No Cambodja, o egoísmo dá lugar à partilha, a ganância à oferta, o desespero à fé, a desistência à luta e a tristeza à felicidade. Morre-se muito mas vive-se mais. Chega-se ao fim doo dia de bolsos vazios, mas de coração cheio.
Fazer a diferença é tarefa hercúlea por aqueles lados. Ingenuidade minha pensar que chegava e, num abrir e fechar de olhos, corrigia desigualdades, melhorava vidas e alterava tremendas injustiças. Os meus pequenos grandes benfiquistas continuam pobres, a viver em barracões, sem saneamento básico e a comer arroz a todas as refeições. Mas fizeram-me ver que eram as pessoas mais ricas com que já me cruzei na vida.
É gigante o que se recebe, parece pequenino o que se deixa.
Ainda assim, no meio do turbilhão de emoções em que me encontro e que foram estes 2 meses, estou contente o orgulhoso. Estou triste e já cheio de saudades, não passa meia hora sem me lembrar dos meus pequenos grandes benfiquistas mas estou contente porque sei que, apesar de não ter feito a diferença, deixei uma marca naquelas vidas. Sei que estes 2 meses foram 2 óptimos meses na vida deles, onde vivemos momentos fantásticos e, de certa forma, consegui contribuir, ainda que pouco, para o futuro deles. Só por isso, valeu a pena.
Sei  que fiz muito mais para além das 4 horas diárias de inglês que era suposto dar. Sei que os meus pequenos grandes benfiquistas já tiveram muitos voluntários, mas tenho a certeza que sou daqueles que vão recordar. Como eles disseram, fui o único que não falhou um dia de mercado, que lhes oferecia comida todos os dias. Fui o único que esgotou todos os programas que eles queriam fazer. O que estava com eles todos os dias, horas a fio. Dadas as circunstâncias, o único que andou nas obras. O que os ias buscar à escola, lhes via as notas e cadernos e lhes tirava as duvidas daquilo que conseguia. Já tiveram muitos voluntários, mas só agora houve um mail criado ou um skype para que o contacto continue. Fui o único a quem eles chamaram de pai ou diziam que queriam que fosse o pai deles. Por certo, também fui daqueles que mais recebeu deles. Isso enche-me de orgulho. Sei que me entreguei de corpo e alma, abdiquei de viagens ou planos turísticos e em nada me arrependo. Vivi, vivi muito, vivi ao máximo o tempo com eles. Eles compensaram qualquer "esforço" que não foi esforço nenhum. Não há melhor sensação na vida que chegar ao fim do dia estafado mas com a sensação de dever cumprido. Não há melhor que ver os resultados dos nossos actos em 14 sorrisos de pequenos grandes benfiquistas que me davam muito mais que eu a eles, através dos seus gestos e palavras, 
No Camboja conheci-me, encontrei talentos que desconhecia por completo. Fui ciclista e mecânico de bicicletas. Fui jogador e treinador de futebol. Fui embaixador da marca Benfica. Fui malabarista, palhaço e entertainer. Fui ginasta e bailarino. Fui baterista, músico e cantor. Fui pintor. Fui incendiário e bombeiro.  Fui cozinheiro. Fui barbeiro. Fui lavrador e apicultor. Fui carpinteiro. Fui comprador e vendedor. Fui o marketer daquele negócio. Fui arquitecto e engenheiro. Fui pedreiro e doméstico. Fui farmacêutico, enfermeiro e médico. Fui educador de infância e explicador de matemática. Fui psicólogo. Talvez tenha sido professor. Fui o comandante daquele exército, o maestro daquela orquestra. Acima de tudo, fui feliz.
Tentei ser a mãe Carmo que manda as crianças lavar os dentes e tomar banho e sofre por elas como se do próprio sofrimento se tratasse, o pai Zé Manel que os protege e defende com unhas e dentes e olha para os seus umbigos antes de olhar para o seu, a mana Mary em estado party animal capaz de aguentar toda e qualquer brincadeira com os pequenos. Tentei ser o tio Zé que os cativa e entusiasma com o Benfica como ninguém e dás lhe tudo o que consegue, a tia Sofia que os enche de abraços, mimos e lhes diz palavras bonitas e sinceras sem qualquer vergonha, a tia Maria que na ausência de pais se multiplica e faz o que tem que ser feito quando tem que ser feito por eles e o tio Ricardo que manda sempre a piada capaz de os fazer desmanchar a rir em qualquer circunstancia. Tentei ser a avó Lili que os leva ao restaurante, lhes dá chocolates e manda as palavras sábias quando a tristeza aparece, o avô Pepe que mantém o respeito e autoridade a controlar tudo fingindo não querer saber de nada, a avó Quica que lhes pergunta as notas da escola e se preocupa com aquilo que eles comeram e irão comer, o avô Ventura que relativiza tudo e perante qualquer adversidade reage com força, coragem e sentido de humor, que se ergue nas dificuldades sem nunca baixar os braços. Fui, essencialmente, o avô Ventura. Acima de tudo, fui feliz.

Por fim, os agradecimentos que jamais poderão ser esquecidos. Um obrigado  do fundo do coração a todos aqueles que tornaram isto possível, obrigado a todos os que decidiram ajudar os meus pequenos grandes benfiquistas. Eles, mais que qualquer outra pessoa, merecem ser ajudados. Eles, mais do que qualquer outra pessoa, dão valor à ajuda que lhes chega.
Obrigado Hugo Ribeiro, obrigado Margarida Rosa, obrigado Ângela Raposo, obrigado Daniela David, obrigado Diogo Campaniço, obrigado Sophia Medeiros, obrigado Mary, obrigado Maria Inês Rosa, obrigado Débora Alface, obrigado Isabel Pina, obrigado Vasco Lebre, obrigado Teresa Brissos, obrigado Tia Sofia. Juntos batemos records de vendas naquele mercado e, juntos enchemos a barriga daqueles miúdos por diversas ocasiões naquela que é, por norma, a altura do ano mais complicada do ano para eles. Foram encomendas quase todos os dias de mercado, temo ter-me esquecido de várias. Foram mais de 200€ que, apesar de a dividir por 14 barrigas, fizeram toda a diferença por lá. Em nome dos meus pequenos grandes benfiquistas, um obrigado enorme.
Um obrigado ainda maior a todos aqueles que, sem receber nada em troca, contribuíram e tornaram tudo possível. Obrigado Hugo Ribeiro, obrigado Isabel Lima, obrigado Marta Braga, obrigado avó Lili, obrigado avó Quica, obrigado pais, obrigado tia Maria e obrigado tio Zé. Juntos comprámos comida para os pequenos grandes benfiquistas, comprámos tanques, sanitas, pedras e cimento para a casa nova deles, comprámos espelhos e cabides para os seus quartos, comprámos pizzas, noodles ou fruta em todos os dias de mercado aos vendedores, pão, atum, águas e sumos aos pedreiros em todos os dias de obra, comprámos quadros para a escola, comprámos mochilas, comprámos brinquedos para todos eles, comprámos kits de higiene para andarem cheirosos e lavados, fomos aos relvados cambojanos jogar à bola, fomos ao circo, fomos nadar à praia, fomos comer ao restaurante, festejámos aniversários nunca antes festejados, pusemos 2 rapazes na escola e matamos-lhes a fome. Graças a vocês, mais coisas poderão ser feitas ainda que comigo em Portugal. Tenho tudo apontado e sei o que sobrou. Deixei muita coisa apalavrada também. O touch a life continuará a ser ajudado, comida para as 660 refeições aos sábados e para as mais de 100 durante a semana não faltará. Os meus pequenos grandes benfiquistas, assim que chegar a autorização para construir, também terão os materiais necessários. Camas e armários para os seus quartos novos também foram prometidos. Em meu nome, em nome da Mavis do touch a life, em nome do Bel da Kilt e em nome de 14 pequenos grandes benfiquistas, um enorme obrigado.

P.S.: Não me despeço por já, tenho 64 posts e vamos encerrar num número bonito e... em grande. O último, ainda por escrever, será inteiramente dedicado a uns tais pequenos grandes benfiquistas. 

Paragem na China!

Antes do epílogo final, a paragem na china é sempre merecedora de alguns comentários.
Após 3 horas de voo, o primeiro, e muitas de espera, estou no aeroporto pronto a embarcar. A espera está a deixar-me de olhos em bico, segue-se um voo de 13 horas até... Paris.
Não gosto de chineses, cada vez gosto menos. Já o tinha dado a entender no primeiro post, reforçado num dos dias de touch a life onde os otários estavam por lá para o show off e ajudar nada. Hoje confirmo, salvo raras excepções que também devem existir, esta gente é estúpida.
Os do touch a life eram para lá de estúpidos. Daqueles que chegam ao Cambodja disfarçando-se de voluntários para trabalhar redes sociais. Justiceiros de meia tigela, desumanos como a desumanidade que denunciam, egoístas apesar de iludidos com uma suposta superioridade moral.
Voltando aos otários, desculpem, aos chineses. Estou sentado no chão do aeroporto porque eles são mais que as mães. Não são mais que os bancos existentes mas acham por bem deitarem-se de maneira a ocupar 3 ou mais bancos e/ou sentar as malas quando há pessoas, idosas, de pé. São barulhentos, nunca uma aula minha com 20 moços teve tanto barulho como isto. Transportam miúdos como cães, literalmente, por uma trela ao pescoço. A net existe mas a liberdade é tanta neste país que não dou um site aberto. Os gajos do controlo das malas, de cabelo à tigela e cabeça de esguenha olham atentamente e, muito, muito lentamente para dentro das malas. Os seguranças não fazem perguntas, gritam com a mania de maus para onde vou. Será que é assim tão difícil de perceber que só aterrei aqui porque eles têm aviões que, volta e meia, caem e portanto são os mais baratos? Tive meia hora numa fila, mais uma, de controlo de imigração. A sério? Mas alguém no seu perfeito juízo (o meu grande amigo Sandro que me desculpe) quer imigrar para aqui? Se algum dia, numa das muitas ideias que tenho para a minha a vida por raramente estar satisfeito com o que faço em Portugal, sugerir ir para a China, estão autorizados a dar-me a um tiro. Se isso acontecer é porque desta cabeça já não se aproveita nada.
Entretanto, os otários, desculpem, os chineses já me embarrilaram. Eram 10 da noite e ainda não tinha comido nada desde o pequeno almoço. Não deu para aguentar mais, tive que ir à caça dos yuans. 20 doláres por uma sandes, no camboja nem 3 seriam.
Mais um choque, dos muitos que me esperam. Os otários, desculpem, os chineses deram-me hotel dado que a escala era superior a 8 horas. Voltei assim à cidade, à civilização. Estou em choque. Que confusão que está a minha cabeça agora.
Estradas alcatroadas com diversas faixas. Regras de trânsito. Edifícios enormes. O hotel era enorme, 14 blocos de edifícios com tudo. Lojas, piscinas, saunas, jacuzzis, banhos turco, coisas supérfluas para quem acaba de chegar do Cambodja. Mundos diferentes.
E agora quem me leva à realidade? Depois de 2 meses onde a liberdade era a palavra de ordem, quem me volta a colocar regras, a maioria delas estúpidas?

E agora? A t-shirt porca e velha vai dar ao lugar ao fato. As pulseiras darão lugar ao relógio. Os colares à gravata. Os anéis… a nada mas continuo casado com os pequenos grandes benfiquistas. A bicicleta dará lugar ao carro. O tuk-tuk ao metro. As motos com 5 pessoas a autocarros. O pó e a poeira à poluição do pára arranca. As passadeiras são para respeitar. O andar em contra-mão desapareceu, o próprio andar desapareceu no meio de tanto semáforo e fila onde travar e parar é a palavra de ordem. Os sorrisos cambojanos darão lugar a caras de pau de gente mal humorada. Os monges laranjas a engravatados com mania de importantes. Os budas desapareceram. O entrar descalço em qualquer casa dará lugar aos sapatinhos engraxados. O arrotar à mesa ao perdido de licença para começar a comer. Os pauzinhos aos talheres, O arroz a tudo e mais alguma coisa. O calor dará lugar ao frio, sim descobri que o Alentejo afinal é frio no verão. A chuva e as trovoadas diárias de bem-vindas para limpar a terra e o suor passarão a coisa non grata recebida de guarda-chuva.. Os 6 litros de água diários darão lugar a 1 ou 2, agora da torneira. As casas de madeira e palhotas com folhas de árvores a arranha-céus enormes. A música khmer às piadas do Markl. Os cabeleireiros de rua darão lugar a superfícies. A electricidade não falhará tanto, mas há uns homens da MEO para insultar quando algo correr mal. Os fruit shakes diários darão lugar ao café. A diversidade de frutas a maças e laranjas. A dragon fruit desapareceu. O repelente ao perfume. A angkor beer à sagres. Os bichos a pessoas. O cheiro nauseabundo dos mercados ao cheiro de sovacos mal lavados, ainda que haja gel de banho por cá. Os mercados a enormes supermercados. Os espaços verdes a fábricas. O khmer a alentejano e o inglês ao português. A liberdade a regras e politiquismos. A descontracção a preocupações e stress. O inesperado ao planeado. O acordar todos os dias com tarefas novas e inesperadas a uma rotina sem piada nenhuma. As horas de exercício e de um lado para o outro darão lugar a horas em frente ao computador.
Não, ainda agora vim embora e quero voltar para a ilha...
Pior, vou de um sitio onde sou feliz e útil para um local onde sou apenas mais um. Mais um descontente que acorda a querer dormir mais, para ir trabalhar naquilo que não gosta e esperar o ordenado ao fim do mês. Faz-me sentido? Nenhum. 
Deixo gente que precisa de mim e de quem gosto, para um sitio onde pouca ou nenhuma diferença faço. Deixo um local de pessoas de bem, que partilham o pouco que há e se ajudam mutuamente para um local onde não se olha a meio para atingir os fins. Onde somos todos amigos mas, se for preciso, passamos por cima de alguém para ganhar mais qualquer coisa sem pensar duas vezes. No Cambodja, mesmo as crianças do touch a life não passavam à frente de ninguém na fila para ganhar a refeição da semana. Deixo um local de pessoas que nunca se queixam do pouco que têm por um local onde todos se queixam do pouco que lhes falta. Deixo um local de pessoas felizes para um sitio maioritariamente de infelizes. Deixo um local de pobres mas ricos por um local de ricos mas pobres. Deixo um sitio sem dinheiro para um sitio onde se vive para o dinheiro, basicamente por dinheiro. É assim, vivemos para isso e ele faz falta em qualquer lugar. 
Faz sentido? Nenhum. Vale-me saber que o voltar e a data do regresso dependem só e apenas de mim. Motiva-me saber que todo e qualquer dinheiro que venha  ganhar, só não será bem gasto se eu não quiser. É para o ganhar que regresso, é para o gastar que voltarei ao Cambodja.

domingo, 6 de setembro de 2015

A despedida!

Kilt, pela ultima vez. Pelo menos naquela casa maravilhosa será. Fui de manhã ter com os meus pequenos grandes benfiquistas, aos quais faltavam 2 – o La e o Lay. Fomos então visitá-los, eu, o Sarath - irmão deles e mais 4. Os 6 fomos em 5 bicicletas, o Sopan de 10 anos foi comigo na minha. É difícil pedalar na areia naquela bicicleta com 2 pessoas mas um cesto cheio de presentes. Mais dificil deve ter sido para outros 2 que viram os pneus das suas bicicletas furados.
Levei mais latas de atum e muitos kgs de arroz. Ficaram com um boião que leva uns 7 litros de água cheio de arroz, mais um saco de 10kgs. Levei também pastas e escovas de dentes para os dois miúdos que rejeitam lavá-los. Como qualquer criança merece um brinquedo para brincar, levei também 2 presentes para eles. Um robot que o Lay tanto gosta, e duas pistolas de brincar com um alvo para o La. Eles adoraram mas, ainda assim, as prendas que mais gostaram foram as 8 fotos que lhes dei. Fotos nossas, eu eles e a mãe. Voltei para a Kilt, deixei-os contentes e com comida. Que tudo lhes corra bem e que sejam um sucesso na escola.


















Para a Kilt, também fui de mochila cheia. Perguntei aos pequenos grandes benfiquistas o que queriam para os seus quartos novos na casa nova, mandei-os escolher o que quisessem que eu comprava. Enquanto a resposta europeia seria uma televisão, playstation ou algo do género, eles pediram-me apenas um espelho que não têm e uns cabides para a pouca roupa. Assim foi, um espelho e um cabide para cada quarto. Além disso, deixei-lhes também umas porcariazinhas que fui acumulando por cá, mais as réguas que tinha comprado quando virei arquitecto. Deixei-lhes 7 ou 8 t-shirts minhas que tinha trazido. Desculpa mãe mas a minha gaveta vai continuar cheia e eles precisam bem mais que eu. Adoraram a roupa do teacher Zé, dividiram entre os mais velhos. Algumas estavam lavadas, outras não. Preferiram as mais porcas, todas suadas da obra porque cheiravam a Zé. Depois dos ténis de futsal, deixei também os meus ténis com que andei todos os dias por cá. Ficaram para o mais velho que hoje no mercado já andava com um t-shirt minha, das que supostamente estava por lavar. A bicicleta deixei ao Soman que não tinha, sei que ele precisa e também sei que ele a empresta sempre que algum precisar. De tudo, o mais visto e apreciado foram as fotos. 110 fotos nossas que resumem estes 2 meses. Fotos de todos, fotos minhas com todos. Rimos imenso aos -las, afinal foram muitos momentos, muitos programas, muitas brincadeiras, muita alegria. Sei que aquelas ficarão bem guardadas e vão acabar nas paredes da casa nova.
Eles a mim deram-me mais desenhos, levo mais de 50, para a parede do meu quarto. Deram-me também 3 anéis, disseram que estou casado com eles. Comprometido estou e perto ou longe, ser-lhes-ei fiel naquilo que prometi – comida e matérias para a escola não voltarão a faltar. Prometi também voltar.
Por lá ainda brincámos, tinhas as pequenas a correr disparadas de braços abertos para me abraçar. Duas foram tomar banho com o seu kit, enquanto se banhavam punham a cabeça de fora da casa de banho para as ver. A seguir, além de pedirem para as cheirar, vestiram-se à Benfica como eu gostava. Os seus olhares tristes por me ir embora desapareceram quando disse que ainda ia ao mercado, disseram-me que também iam e foram chatear o Bel para as levar.




















A despedida ficou então para o mercado. Estavam todos por lá e ficaram muito tempo. O Bel deixou-os comigo e foi embora. Brincámos alegremente, jogámos à apanhada de cabeça para baixo novamente. Quando era eu a ter que as apanhar o jogo teve que acabar, entraram a fugir pelos corredores de um hotel a dentro. Comeram todos noodles que eu ofereci. 

Depois veio a pior parte. Dizer adeus a 12 miudos magníficos que tive a sorte de conhecer. Deixei-os entrar na minha vida e em boa hora o fiz. Estes nunca me desiludiram, mostram gostar tanto ou mais de mim como eu gosto deles. Aqui não há receios de dizer gosto de ti, eu disse-o a todos. Eles chamam-me “brother”, outros vão mais longe e insistem no “father”. Prometi voltar e voltarei. Não sei quando, eles pediram-me para não demorar. Dizem que se demoro depois venho com barba e bigode. Vejo o Sovann grande como eu agora, o Chamrong como o Sovann, o Chamrang como o Chamrong, o Sarath como o Chamerong, o Soman como o Sarath e o Sopan disse que estaria como o Cristiano Ronaldo, um craque a jogar futebol. Nas meninas, a Tida estaria uma senhora, a Sochea como a Tida, a Sokim como a Sochea, a Sokay como a Sokim e a Bonita como a Sokay. A Soklay, com essa não há problema, eles dizem que será sempre pequena. Claramente, não posso demorar a voltar.

A despedida até foi tranquila, uns pediram-me abraços, outros agarraram-me e faziam-me festinhas. Nenhum chorou. Os rapazes disseram que queriam chorar mas que os rapazes são fortes e nunca choram. Nas meninas vi olhos húmidos, mas não cheguei a ver lágrimas. Eu, por eles e para bem deles, aguentei-me. Apenas me tremia a voz enquanto dizia pela última vez "good luck for you" e "pay attention in your classes". Dei 3 passos para longe deles e desfiz-me em lágrimas, como ainda agora me desfaço. Deixei o mercado e foi automático, o lábio a tremer, as lágrimas a escorrer e o maior nó na garganta que já tive na vida. Foi muito tempo, 2 meses parece pouco mas foram muitas horas seguidas, todos os dias sem excepção. Foram demasiados programas, demasiados momentos. Quando vim para o Camboja, achava que ia acabar por gostar dos meus alunos, mas nunca pensei que os alunos se tornassem naquilo que estes pequenos grandes benfiquistas se tornaram. Os alunos tornaram-se família, amigos. Tornaram-se demasiado importantes e especiais para agora os deixar. Hoje foi sem dúvida, de entre todos, o dia mais difícil. Já me despedi de muita gente na vida mas nunca desta forma. Aqui não há uma data de regresso prevista, nem tão pouco uma certeza de regresso. Não há a certeza que eles ficarão bem e juntos caso alguma coisa corra menos bem. Há aquelas pessoas de quem realmente gostamos, depois há os meus grandes pequenos benfiquitas. Há aquelas pessoas que marcam a nossa vida, depois há os meus pequenos grandes benfiquistas. A eles, um bem haja. Que tenham tudo aquilo que merecem, que a vida seja justa com eles. Que tenham tudo aquilo que precisam. Em Portugal, têm um irmão que tudo fará para os ajudar. No outro dia vi no facebook, depois de publicado um texto meu, a frase: “por vezes grandes coisas têm um pequeno começo”. Que estes dois meses tenham sido apenas esse pequeno começo.
Para já, infelizmente, há um avião para apanhar. 35 horas entre aviões e aeroportos e estarei de regresso. Tempo suficiente para escrever aquele que provavelmente será o ultimo post. Dado o tempo disponível e o que há para expressar, cheira-me a testamento.

sábado, 5 de setembro de 2015

Festa surpresa!

5 de Setembro, memorizei esta data desde o dia em que fomos ao circo e vi, nos cartões que eles têm da Kilt (cá não há B.I.) com as datas de nascimento, que correspondia à suposta data de nascimento do Soman. Suposta porque quem fez aquilo foi o Bel que, segundo os miúdos, quando não sabia inventava datas de nascimento e aquilo está mal. Ainda assim, o Soman não sabe quando faz anos e, até hoje, nunca tinha comemorado o aniversário. Hoje, insistiu que continuava a ter 11 anos mas teve direito a festa!
A festa foi surpresa. Combinei com todos os pequenos grandes benfiquistas da Kilt festejar hoje sem lhe dizer nada. Os últimos dias foram passados aos segredos em frente ao Soman, com mentiras como “sabado o friend Zé tem coisas para fazer” ou a despedida de ontem que foi um “see you on Sunday” mas num entusiasmo louco. Eles, miúdos como são, davam imenso nas vistas com  toda a excitação em torno da festa. O Soman, miúdo como é, nos seus 11 anos não percebeu, apenas amuava de vez em quando por ninguém lhe contar os segredos (tinha que inventar qualquer coisa sempre para lhe dizer ao ouvido). Amua muito, está várias vezes triste aquele pequeno grande benfiquista. Hoje como o mais velho me dizia no mercado, não teve um bocadinho sem um sorriso na boca. Nunca ninguém o tinha visto tão contente.
Na verdade, a cara dele deu para perceber que não cabia em si de tanta felicidade. Chego, novamente de bicicleta cheia, com comida para todos. Correram todos na minha direcção numa excitação parva para começar a festa. Ao verem os sacos diziam: “full again Zé”. Sim, enchi-lhes a barriga novamente. A comida era imensa, eles comeram imenso, quase que despachavam tudo. Além da carne, salcichas, batatas fritas, sumos, pão, melancia, doces e bolo, comprei balões, espuma para atirarmos uns aos outros no momento dos parabéns e umas buzinas. Não se calaram com as gaitas a tarde inteira, chego ao mercado ainda eles andavam a soprar para aquilo.

De prenda de anos dei um relógio, aquilo que muitas vezes ele me falou que queria mas era caro (não foi!). O Soman não parava de sorrir, saltava de entusiasmo. Caiu numa das brincadeiras e quando ia para chorar, algo usual nele, levantou-se para continuar aos saltos com os outros. Teve, pela primeira vez, os seus amigos a cantarem-lhe os parabéns, teve algo só para ele. Agradeceu-me enumeras vezes, deu-me um abraço enorme, chamou-me de pai. Disse-me que gostava que eu fosse o pai dele. Aquela cara de alegria com que ele estava hoje vale qualquer esforço ou dinheiro que gastei. Melhor agradecimento não podia ter.
O resto da rapazada também estava animada, ou mais animada que o normal porque animados estão sempre. Comemos, brincámos, dançamos, parvejamos. Juntos, fomos e somos felizes. Vivemos e quem vê apenas inveja a relação entre nós criada. O Bel, esse, adora e tira fotos para recordar o momento. Eu e os pequenos grandes benfiquistas inventamos as brincadeiras mais parvas que alguma vez brinquei. Jogos de apanhada de cabeça para baixo que por certo eram 2 horas de choro num miúdo europeu tal não era o susto, por cá foi um sucesso. Eu que tenha forças para correr com todos. Rimos e gozamos uns com os outros e o tempo passa a correr. A festa começou as 10h da manhã, acabou às horas de ir para o mercado. A festa foi, mais uma vez, uma animação.
Lamento não estar por cá nas datas de aniversário de todos eles e não poder proporcionar um dia especial a cada um deles, que tanto merecem. Levo comigo todas as datas de nascimento (verdadeiras ou não!) para pelo menos mandar um mail e falar no Skype (hoje tratei do Skype deles). Assim, ao menos sabem que nesse dia fazem ou fizeram anos.  Infelizmente esta foi a minha última festa naquela casa tão especial para mim. No fim da festa chegou-me essa informação ao cérebro e senti uma tristeza demasiado grande que os próprios pequenos perceberam… Não quero falar disso. No avião logo tento meter em palavras a angustia que é ter que ir embora, deixar os meus pequenos grandes benfiquistas e voltar à realidade onde tenho tudo e mais alguma coisa daquilo que preciso, mas onde nunca me sentirei tão bem como aqui onde supostamente não há nada. Há pessoas, verdadeiros seres humanos que partilham tudo, vivem uns para os outros e ajudam-se o mais possível. Isso traz muito mais que qualquer dinheiro que venha a ganhar no futuro. 
Por hoje deixo-vos as fotos e os vídeos da festa que mostram que não era só o Soman a não caber em si de tanta felicidade. Tanto ou mais feliz que ele, estava eu. A minha t-shirt também diz uma grande verdade: I <3 Cambodia!






























sexta-feira, 4 de setembro de 2015

Começaram as despedidas!

Começou a épica feira da cuba. Mais um ano a falhar aquela festa fantástica onde se perdem comboios ao meio-dia porque a noite da véspera ainda está boa. Ainda assim, não trocava estes dias por nada.
Esta tarde voltei a ser aluno. A professora de italiano ensina frases e nós praticamos em diálogos. Eu servia sempre de cobaia. Continuamos a inventar supostos diálogos no mercado, onde nunca vi um italiano. Enquanto a professora ensina expressões como “quanto custa?” eu mando-os perguntar como é que se diz “if you don’t buy, I’ll hit you”. Eles riem-se com ar de gozo e damos cabo da paciência da senhora, coitada. Ela até é simpática, e se muitas vezes parvejo, quando ela começa a ficar chateada com tanta brincadeira também sou um aluno exemplar. Mesmo assim, há muita palhaçada naquelas aulas.










Entretanto, os miúdos, tal como eu, começam a sentir que tudo isto está a chegar ao fim. Não querem, eu muito menos quero que a aventura termine. Hoje, o Sovann, o Chamrang e o Sarath tinham prendas para mim. 4 desenhos (o Sovann fez 2) dos melhores que eles já fizeram, com os melhores materiais que têm e embrulhados em plástico para não estragar na viagem. O Sovann escreveu um texto que fiquei de ler apenas em Portugal e no seu embrulho deixou também a única foto que tem dele próprio, dada há uns anos por outro voluntário. Disse que queria que fosse eu a ficar com ela para que nunca me esquecesse dele. Jamais o farei e o facto dele me querer deixar com aquilo significou imenso para mim, um orgulho enorme. Se calhar também marquei a vida dos pequenos grandes benfiquistas, não foram só eles a marcar a minha.














Emoções à parte que o doloroso dia ainda não chegou, à tarde fomos jogar futebol. Os rapazes todos juntos, rimos imenso naquele relvado, todos vestidos à Benfica. Faltou o Chamrong, que ardia em febre e não estava capaz de jogar. No fim, ofereci-lhe os meus ténis laranja à Cristiano Ronaldo. Ele, vaidoso como é, adorou o presente e ficou de marcar muitos golos com os ténis que um dia foram do teacher Zé. Por certo, os ténis são mais úteis a ele que a mim. Ele dar-lhes-á melhor uso que eu.

A manhã foi de emoções fortes, fui chamado ao touch a life. Para além de cozinhar (hoje foi descascar ananás e picar alho) e dar de almoço a mais de uma centena de crianças que, durante a semana, vão comer àquela casa, havia um programa diferente para o qual tinha que estar presente. A chama imensa voltou a aparecer, a novos miúdos mas recebida com a mesma alegria. Os equipamentos que tinha deixado no touch a life foram hoje distribuídos por meninos cambojanos que, à semelhança dos meus, pouco ou nada têm. Um por um foram vestindo o manto sagrado e seguiram para o campo de futebol improvisado. Começamos então a jogar um futebol que nem balizas tinha, era apenas correr atrás duma bola numa excitação imensa por terem equipamentos novos e bons, da melhor equipa do mundo como fiz questão de lhes explicar, o Benfica. Mais uns fâs, mais umas crianças felizes. Que orgulho que é conseguir proporcionar estes momentos. Todos os adultos o touch a life estávamos particularmente contentes hoje.













Depois veio a pior parte, o adeus ao touch a life. Se custou, não posso sequer pensar quando o fizer com os meus pequenos grandes benfiquistas. Muitos sábados depois, falho o último. Fui e já tenho saudades daquele ambiente, daquelas pessoas, daquela casa. Fui mas quero voltar sempre que me for possível. Sai pela porta grande, todos fizeram questão de se despedir de mim, de me desejar a melhor das sortes, de tirar fotos comigo e de agradecer a dedicação ao longo destes dois meses. Fui de coração apertado e com bonitas palavras da Mavis, a responsável (na foto). Guardo-as para mim, não tenho que as partilhar. Da Mavis depende a sobrevivência de centenas de crianças. Aqui a cozinhar, brincar com os miúdos e a ajudar em tudo o que me for possível, ou em Portugal simplesmente a contribuir monetariamente para o que ali se faz semanalmente, não quero nunca deixar de apoiar esta causa.
Naquela casa cresci enquanto ser humano, conheci pessoas fantásticas, ouvi histórias incríveis e vivi momentos que levarei para sempre comigo. Ali aprendi o que é realmente praticar o bem. Ali aprendi o que é realmente passar mal. Ali são ajudadas centenas de crianças pelas pessoas mais incríveis que já tive oportunidade de conhecer. Pessoas de todo o Mundo, pessoas que deixaram tudo para se dedicar aos outros. Doentes, aleijados, ex-alcoólicos, sobreviventes de catástrofes de avião, responderam às adversidades da vida com a sua generosidade. Deixaram famílias e amigos para trás com o único propósito de combater a fome das crianças cambojanas. Gostava de ser como eles, de viver a palavra generosidade como eles vivem. Estou muito longe disso. Fica a última foto, da família touch a life a despedir-se de mim. Chamo de família porque, assim como a Kilt, foram a minha família nestes 2 meses. Não podia ter tido melhor sorte. Em família vi e presenciei momentos que jamais me esquecerei. Já os relatei, é escusado repetir. Quem os vive sabe do que falo, quem apenas lê está muito longe de imaginar.

Até breve touch a life. Desejo que por mais voltas que a vida dê, tenha a sorte de voltar a esta casa, de me cruzar com mais pessoas como estas.